“Os socialistas acreditam que a humanidade é coletiva, e não individualista. Eles consideram sagrada não a voz interna de cada indivíduo, mas a da espécie Homo sapiens como um todo. Enquanto os liberais buscam tanta liberdade quanto possível para os indivíduos humanos, os socialistas buscam a igualdade entre humanos. De acordo com os socialistas, a desigualdade é a pior blasfêmia contra a santidade da humanidade, porque privilegia qualidades periféricas dos humanos em detrimento de sua essência universal. Por exemplo, quando os ricos têm privilégios sobre os pobres, significa que damos mais valor ao dinheiro do que à essência universal de todos os humanos, que é a mesma para ricos e pobres.”
O trecho acima faz parte do já clássico ‘Sapiens- Uma breve história da humanidade’, de Yuval Noah Harari, título importante para conhecer melhor quem somos e como chegamos ao século XXI desde nosso surgimento na África Oriental e mesmo antes, quando o elo entre chimpanzés e humanos desapareceu da face do planeta Terra.
Por acaso, eu havia lido a última página dessa obra monumental quando vi no noticiário o registro da morte de José Pepe Mujica, 89, seguido de vídeos que mostravam seu pensamento político. Em um deles, entrevista relativamente recente ao jornalista Pedro Bial, dizia que tudo o que tinha feito em sua acidentada existência tivera como objetivo não o poder, mas a humanidade. De acordo com os pressupostos de Harari, avaliei que Mujica tinha sido exemplar humanista socialista, vivido de forma coerente com seus ideais, nunca se apartando das certezas políticas e éticas que o alimentaram até o fim: exceção no rol dos políticos que se dizem humanistas socialistas democratas aqui e alhures.
Nascido em família de pequenos agricultores em Montevidéu, Mujica trabalhou no campo e, desde cedo, sentiu-se atraído pelas lutas sociais, iniciando a militância no movimento estudantil. Por volta dos 30 anos, radicalizou e aderiu ao Tupamaros, grupo de guerrilha urbana que homenageava no nome o inca Tupac Amaru, líder de uma rebelião indígena no século 18, contrária ao domínio espanhol no Peru. A guerrilha se caracterizou por ações armadas contra a ditadura uruguaia. Os guerrilheiros se apresentavam como benfeitores do povo e distribuíam alimentos e bens, obtidos em assaltos a bancos, a moradores de bairros pobres de Montevidéu. Mujica foi preso três vezes. Nas duas primeiras conseguiu escapar, mas a terceira prisão lhe custou 14 anos de reclusão, um terço deles em solitária.
Após o retorno do país à democracia, em 1985, foi beneficiado pela lei que anistiou presos políticos. Anos depois, criou o Movimento de Participação Popular, dentro da Frente Ampla. Nas eleições de 1994, foi eleito deputado e nas de 1999, senador. Em 2005 ocupou o cargo de ministro da Agricultura. Quatro aos depois tornou-se presidente da República. Ao ser empossado, definiu como prioridades educação, segurança, meio ambiente e energia; e colocou como objetivo primordial de sua administração a erradicação da miséria e a redução da pobreza em 50%. Assim que assumiu o cargo, a primeira lei promulgada foi a descriminalização do aborto; a segunda, o matrimônio igualitário; a terceira, a legalização da maconha. Eram propostas de campanha que ele cumpriu, pois acordadas com aqueles que o tinham eleito. As outras foram a ampliação da despesa social na despesa pública (de 60,9% para 75,5%); a queda do desemprego (de 13% para 7%); a redução da pobreza (de 40% para 11%); o aumento do salário-mínimo (250%). Ao deixar a presidência do Uruguai, voltou a plantar flores e legumes em sua chácara, embora não tenha se aposentado da política.
Morto da última terça, seu corpo foi levado no dia seguinte ao Edifício da Presidência, de onde seguiu à tarde ao Palácio Legislativo para um velório aberto ao público. O atual presidente Yamandú Orsi liderou o cortejo fúnebre com os ministros de governo. O caixão passou por locais-chave na trajetória política de Mujica, como as sedes dos movimentos de Libertação Nacional (MLN) e de Participação Popular (MPP), e do partido Frente Ampla.
‘A morte de uma pessoa costuma revelar a forma como ela viveu’, escreveu Garcia Marquez, reconhecido ficcionista colombiano, Nobel de Literatura, afetado como outros escritores do continente pela miséria e corrupção latino-americanas descritas na sua metafórica Macondo. O velório de Mujica levou às ruas milhares de uruguaios de todas as idades que exibiram nas faces não só a dor da perda mas também a admiração, o respeito e o amor pelo político que dedicou a existência a melhorar seu país e pôde um dia dizer: ‘O Uruguai não é um país corrupto, somos um país decente.’
Uma vida tão rica em acontecimentos, propósitos e coerência mereceu o olhar de escritores e roteiristas.
‘Os Sonhos de Pepe’ é um documentário de Pablo Toro, que acompanha Pepe Mojica em suas viagens pelo mundo, ressaltando uma visão progressista pautada pela sustentabilidade e pela justiça social. ‘Pepe, uma vida suprema”, é outro bom trabalho do cineasta sérvio Emir Kusturika, que conquistou com o filme um prêmio no Festival de Veneza. Antes dos documentários, em setembro de 2009, foi publicado o livro Colóquios de Pepe, do jornalista Alfredo García, transcrição de várias entrevistas gravadas onde se revelam pensamentos, ideias e frases. O mais elogiado é a biografia ‘Mujica’, de 1999, do romancista e ensaísta Miguel Ángel Campodónico. Em todas essas obras de arte, transparece o frasista:
‘Não é bonito legalizar a maconha, mas pior é dar pessoas ao narcotráfico. O único vício saudável é o amor.’
‘O casamento gay é mais velho que o mundo. Tivemos de Júlio César a Alexandre, o Grande. Dizem que é moderno mas é mais antigo que todos nós. É uma realidade objetiva. Existe. E não legalizar seria torturar as pessoas desnecessariamente.”
‘Legalizando (o aborto) e intervindo é possível conseguir que muitas mulheres voltem atrás em sua decisão, sobretudo aquelas de setores mais humildes ou que estão sozinhas.’
‘Eu não sou pobre, eu sou sóbrio. Vivo com apenas o suficiente para que as coisas não roubem minha liberdade.’
Uma de suas considerações mirou a Morte e foi enunciada há poucas semanas: ‘É preciso morrer. Pertencemos ao mundo dos vivos, nascemos destinados a morrer. Por isso a vida é uma aventura maravilhosa. Mais de uma vez na minha vida a morte rondou a cama, desta vez parece que vem com a foice em punho. Vamos ver o que acontece.’
O que acontece agora é o poder da memória a recuperar o homem que vivia num lugar modesto porque acreditava ter ali tudo de que necessitava; que dirigia um velho Fusca que lhe permitia transitar sem muitos problemas da área rural ao centro urbano onde despachava; que usava roupas surradas e sapatos colados com fita crepe porque abominava o consumismo; que dentro da prisão precisou beber a própria urina para não morrer de sede; que ao sair dela exibiu um penico cor de rosa cheio de flores, imagem de sua forma de encarar a vida: resistência, restauro e transformação constantes. Foi fiel aos seus valores e deu às coisas seus verdadeiros nomes: “A Venezuela de Maduro não é uma democracia”. É provável que neste contexto não posaria para fotos junto a líderes autoritários como Trump e Chi Zin Pin.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.
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