Na estátua em homenagem a mahatma Gandhi instalada no centro do Rio de Janeiro, o símbolo do pacifismo empunha hoje o que parece ser um porrete. Parte do cajado original foi furtado em 2023, e a falta do restante do objeto dá ao monumento uma aparência agressiva --o oposto do que pregava o líder indiano.
"Passei aqui outro dia com meu filho e ele perguntou por que o Gandhi tava segurando um pedaço de pau. Na hora, nem soube o que dizer. É triste ver um lugar com tanto simbolismo entregue ao abandono assim", diz a professora Luciana Alves, 42, que trabalha em uma escola no centro da cidade e costuma atravessar a praça para chegar ao trabalho.
O caso, ocorrido na praça que leva o nome de Gandhi, é um entre tantos que transformaram estátuas e esculturas históricas em caricaturas de si mesmas. São dedos, mãos, asas, narizes, placas, pedaços de gradis --pequenos fragmentos arrancados com marretas, serras ou na força bruta.
Segundo dados do grupo SOS Patrimônio, criado desde 2014 para denunciar as situações de degradação, 90% dos 1.400 monumentos públicos do Rio já sofreram algum tipo de vandalismo ou destruição parcial.
A Secretaria Municipal de Conservação e Serviços Públicos do Rio disse à Folha que destinou R$ 800 mil em 2023 para recuperação de peças furtadas ou vandalizadas e que os reparos seguem um cronograma de manutenção. Neste ano, ainda segundo a pasta, foram registrados sete casos de depredação de monumentos.
O material, quase sempre de bronze ou ferro fundido, é pesado demais para ser carregado por inteiro. Por isso, os criminosos optam por levar partes.
Para especialistas, a prática, impulsionada pelo mercado informal de sucata, transforma elementos simbólicos em metal derretido, enquanto esvazia o sentido de esculturas que ajudam a contar a história da cidade.
"Não vai para antiquário nenhum. Tudo vira metal fundido. O problema é o ferro-velho", disse Marconi Andrade, restaurador e fundador do SOS Patrimônio. O grupo conta com quase 10 mil membros entre historiadores, arquitetos e restauradores, espalhados por todas as regiões do Rio, para documentar o estado de conservação das obras.
Na mesma praça Mahatma Gandhi onde Gandhi perdeu parte do cajado, o Chafariz Monumental do Jardim do Monroe --tombado pelo Iphan-- tem anjos sem asas, narizes, cabeças, dedos ou mãos. A água parou de jorrar em 2017. Hoje, o cheiro de urina e fezes denuncia o uso do espaço como banheiro a céu aberto. Durante uma visita da reportagem, ao menos três pessoas advertiram que era perigoso permanecer ali com câmeras, mesmo à luz do dia e com uma viatura do Segurança Presente estacionada por perto.
Casos semelhantes se espalham pela cidade. No Campo de Santana e no Passeio Público, bustos desapareceram sem deixar vestígios. As setas de metal que fazem o acabamento na parte de cima das grades, que deveriam proteger os parques, estão desaparecendo. Num trecho onde haveria 200 ponteiras, 125 já foram furtadas.
Na zona norte da cidade, blocos da balaustrada centenária que beira o Campo de São Cristóvão, de ferro fundido, estão sendo levados. "A cada semana falta um pedaço. Eles vendem em ferro-velho por trocados. É um absurdo, porque o valor comercial é baixíssimo já que o ferro fundido tem pouco valor comercial", lamentou Marconi.
Mesmo os monumentos mais turísticos não escapam. Na zona sul do Rio, os óculos da estátua em bronze de Carlos Drummond de Andrade na orla de Copacabana já foram furtados mais de dez vezes.
Para os especialistas, não há política pública consistente de preservação. Segundo Marconi, entre 2019 e 2025, seis monumentos foram restaurados no Rio e mesmo essas restaurações são frequentemente incompletas. "Eles restauram sem repor os elementos originais. Fica uma peça descaracterizada, às vezes até mais triste do que quando estava danificada."
Exemplo disso está o monumento ao General Osório, na praça Quinze de Novembro, alvo de vários atos de vandalismo. Em 2023, uma cerca de bronze de duas toneladas, feita com canhões usados na Guerra do Paraguai, foi furtada e nunca mais foi reposta.
Ali, os detalhes também não passaram ilesos. A espada do militar também chegou a ser levada, bem como as letras de bronze da placa informativa --estas não foram recolocadas. Hoje, à sua volta, postes de iluminação quebrados e pessoas em situação de rua completam a paisagem de descaso.
"Foi o primeiro monumento instalado na cidade após a proclamação da República do Brasil e tem um simbolismo muito forte: ele está exatamente de frente para a janela onde dom Pedro 1º proclamou o Dia do Fico, com a espada apontada para o lado oposto. É a ruptura entre o império e a república representada", afirmou Marconi.
Outro caso simbólico de perda irreparável, ocorreu com a estátua de bronze de 400 kg de Rosa Paulina da Fonseca, mãe do marechal Deodoro da Fonseca. Ela foi arrancada e furtada na íntegra, em 2020, e nunca foi recuperada.
Para a historiadora Sheila Castello, o apagamento da memória urbana não é apenas um problema estético ou de segurança. É um risco civilizatório. "Sem referência ao passado, perdemos a capacidade de compreender o presente. Cada monumento destruído é uma história que se desfaz em silêncio."
Ela criticou movimentos que pregam a destruição de obras ligadas a personagens controversos. "Apagar a memória é um risco enorme. Se você não mostra os registros do passado, perde a chance de compreender os mecanismos que levaram aos crimes de antes."
Para Sheila, é preciso promover um debate amplo e urgente, que envolva autoridades, lideranças comunitárias, arquitetos, professores e artistas. "Precisamos criar um plano de defesa do patrimônio carioca. Antes que seja tarde demais."
A corporação afirmou ainda que muitos dos crimes são cometidos por pessoas em situação de vulnerabilidade, com alto índice de reincidência, e que trabalha em parceria com a Polícia Civil para identificar os responsáveis.
"Mas não é só um problema de polícia. É de política pública, de educação, de valorização da nossa história", disse Marconi. "Andar pelo centro do Rio é como passear por um museu a céu aberto. Só quenão enxergamos isso."
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