Negroni, caipirinha, mojito, uísque com gelo. Bebidas que cabem na memória afetiva de qualquer adulto minimamente sociável. Prazer, celebração, conversa boa. O que ninguém espera, absolutamente ninguém, é que um gesto banal como pedir a caipirinha de sempre vire roleta-russa. Foi o que aconteceu: destilados adulterados com metanol entraram em circulação e produziram um enigma brutal - gente doente em diferentes estados, sequelas graves, mortes. O veneno não tem cheiro de vilão. É transparente, sem assinatura no paladar. A tragédia se camufla no detalhe.
Os resultados são frios, tétricos. O Ministério da Saúde lista 113 registros de intoxicação por metanol associados a bebidas alcoólicas - 11 confirmados e 102 em investigação, com ocorrências concentradas em São Paulo e notificações também no DF, PE, BA, PR e MS. Dados iniciais apontam sete mortes e várias ocorrências de cegueira.
O governo federal instalou Sala de Situação, acionou estoque de etanol hospitalar (que funciona como um dos antídotos), solicitou à OPAS (Organização Panamericana de Saúde) outro antídoto, fomepizol, e coordena ações com estados e municípios. A Anvisa intensificou ações para garantir acesso ao antídoto e apoiar análises laboratoriais. Em Brasília, a vigilância interditou lotes em rede de supermercados; em São Paulo, operações resultaram em apreensões e estabelecimentos fechados. Nas ruas, o efeito foi imediato: bares suspenderam coquetéis com destilados e o público migrou para chope, cerveja e vinho.
Há quem pergunte “como se proteger?”. A resposta óbvia - parar de beber destilados – funciona para hoje, mas não resolve o mistério central: o perigo que não se anuncia, não se enxerga, não se antecipa. O frasco tem rótulo, selo, cor. O barman é conhecido. A casa, idem. Tudo parece certo, até não ser.
Foi assim com a conserva de cebola feita com vinagre errado; com colírios clandestinos vendidos online; com o suplemento que não contém o que promete; com o preenchimento estético feito com produto de origem incerta; com tortas e bolos envenenados por malucas; com a carne mantida fora da temperatura mínima. O fio comum é a ausência de sinal confiável para o consumidor. A armadilha mora no invisível.
Isso não absolve ninguém. Há crimes neste elo que leva a bebida do produtor ao consumidor — falsificação, contrabando, adulteração química, fraude. O Estado tem deveres que não comportam poesia: rastreabilidade, fiscalização, punição exemplar e recall rápido.
O setor privado precisa sair do estado de negação: bar que compra “barato demais” compartilha o risco; distribuidora que fecha os olhos alimenta o monstro; marca séria precisa auditar, publicar lotes, abrir canais de checagem. Ao consumidor, três regras de sobrevivência para já: a primeira, desconfie de preço milagroso; depois, salvo em casos de absoluta confiança no bar/restaurante, exija que a garrafa seja aberta à sua frente, com selo íntegro; por fim, se tudo der errado e apresentar visão turva, náusea ou dor de cabeça intensa após destilado, procure a emergência imediatamente. Metanol cega e mata, e o tempo talvez seja o mais importante antídoto.
Mas esta coluna é menos um manual e mais um alerta sobre o imponderável. Vivemos cercados por sistemas que funcionam até o dia em que deixam de funcionar. A confiança pública é um cristal: leva anos para se formar, estilhaça em segundos. Hoje é a caipirinha; ontem foi o xarope falsificado; amanhã, quem garante, pode ser a água saborizada da moda. Não há como vigiar cada molécula nem suspeitar de cada garrafa ou lata. Há, isto sim, como reduzir a incerteza e o risco: cadeias de produção e venda auditáveis, informação transparente, incentivos alinhados, punição que doa para valer. Também não custa acrescentar um pouco de humildade diante do óbvio: às vezes o perigo mora no detalhe que ninguém vê.
Até lá, cada um ajusta a própria bússola. Alguns vão suspender os destilados por um tempo; outros só vão beber o que virem ser aberto; muitos migrarão definitivamente para a cerveja, o vinho, o suco - e está tudo certo. Não é moralismo. É prudência. O que se pede de quem vende e de quem governa é simples: façam a parte de vocês para que o copo volte a ser o que sempre foi - um copo. Sem mistério. Sem veneno. Sem mortes.
Corrêa Neves Jr é jornalista, diretor do portal GCN, da rádio Difusora de Franca e CEO da rede Sampi de Portais de Notícias. Este artigo é publicado simultaneamente em toda a rede Sampi, nos portais de Araçatuba (Folha da Região), Bauru (JCNet), Campinas (Sampi Campinas), Franca (GCN), Jundiaí (JJ), Piracicaba (JP) e Vale do Paraíba (OVALE).
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